Thursday, June 13, 2013

Quando o Diabo reza - Mário de Carvalho


A melhor forma de começar a falar deste Quando o Diabo reza, de Mário de Carvalho, é retroceder trinta anos e falar sobre uma obra de outro Mário, esse Zambujal, e a sua Crónica dos Bons Malandros, porque no fundo esta obra é, por assim dizer, uma crónica de malandrinhos.
O paralelismo entre as obras está derramado sobre as escrita, desde os criminosos que falam como criminosos, como disse Ricardo Araújo Pereira, ao esquema rocambolesco com imprevistos de última hora. A única coisa que falta é a história dos personagens, mas ao contrário das personagens de Zambujal, aos criminosos de Carvalho falta-lhes história. Não que tenham muita. Facilmente se percebe que não há ali muita história para contar,  que não são vítimas das amarguras da vida, personagens trágicas, são apenas apologistas da malandragem, gente sem jeito para outras coisas, nunca ficando muito claro se por não quererem, se por não poderem. Ou dito de outra forma, onde Zambujal faz quase que uma apologia da malandragem, onde sentimos que podemos fazer amizade com os seus malandros, os malandros de Mário de Carvalho são gente que não queremos convidar para nossa casa desde o momento zero, ao momento final.
O centro da pequena malandragem de Carvalho é um velho. Um velho que se diz ser endinheirado apesar de nunca o sabermos e ficar sempre a impressão que a sua fortuna não será tão fortuna assim. Como velho que se diz ser endinheirado, num meio pequeno, esse velho é alvo do interesse de um grupo de meliantes e da própria família, que não se lembra dele até as contas começarem a chegar, até a vontade de comprar um carro ser grande, até... São esses malandros, nas palavras do autor, dois vadios, uma galdéria e duas irmãs, estas filhas do velho, uma que vive com ele, a outra que vive amarguradamente distante.
A narrativa decorre em Lisboa, com uma ligeira incursão aos arredores, mas pode ser num bairro qualquer onde haja uma igreja daquelas onde se paga o dízimo e que se especializam em pobres, porque os ricos vão para a outra (como a páginas tantas um dos vadios diz). Esta indefinição geográfica e a falta de história das personagens são o ponto em que as obras dos Mários, ambas narrativas da malandragem que facilmente se encontra nas esplanadas e ruelas de Lisboa, se afastam. Onde Mário Zambujal nos premiou com um romance curto, Mário de Carvalho brinda-nos com um conto longo.
Enquanto conto revela-se no entanto uma autêntica lição de como escrever. As personagens podem ser gente oca, mas não são vagas e indefinidas, a narrativa é bem estruturada e com um ritmo que encontra paralelismo na acção (de facto a fase inicial, em que se monta o palco para a farsa final, é de leitura um pouco mais lenta, mas torna-se mais fluída com o desenrolar da narrativa) e a escrita flutua com as personagens, sendo mais vadia com os vadios e galdéria com a galdéria, sem exagerar nem forçar. Ler este Quando o Diabo reza podia ser um acto de estar sentado numa esplanada a ouvi-los contar as suas aventuras e isso, essa arte de nos dar fatias da realidade que podiam ter sido vividas por nós, é uma sublime arte que merece ser apreciada.