Saturday, February 26, 2011

Ensaio sobre a Lucidez, por José Saramago



Ensaio sobre a Lucidez é talvez uma das mais subvalorizadas obras de José Saramago. Sem talvez, será uma das menos divulgadas. O que é pena!

Numa capital, por altura de uma eleição, a população vota, em massa, branco. Na repetição das eleições, a percentagem de votos em branco é ainda maior. O Governo sente o abalo destas eleições e reage. Seguem-se medidas que visam acabar com a sublevação sem rosto, classificando-o como um ataque à democracia. Procuram-se culpados, restrigem-se liberdades e direitos, mas dos cabecilhas nem indícios. Na realidade, nem de um movimento há indícios, mas as coisas não acontecem desta forma sem que ninguém as organize. Finalmente torna-se imperativo que o país cerque a sua capital.

Nesta primeira parte a obra serve fundamentalmente como exercício sobre os meandros do poder e das decisões, a forma como. Nesta parte os intervenientes são o Governo e a População, assim mesmo de forma colectiva, com aparições esporádicas do Presidente. De um lado procuram-se soluções, do outro heroicamente acatam-se e adaptam-se. A solução assume cada vez mais os contornos da necessidade de um bode expiatório, alguém que possa acatar com as responsabilidades da sucessão de falhanços. Falhanços a cuja arquitectura Saramago nos conduziu pela sua pena, através dos corredores de decisão e calculismos que minam o poder e o sistema partidário actual.

Seguimos então, por intermédio de uma denúncia maldosa e, para os leitores regulares de Saramago pouco, anónima, para o verdadeiro ensaio sobre a Lucidez.
Transportados para o interior da população pela pena de Saramago e a visão de uma equipa de polícias à paisana, procuramos com eles as provas que incriminem essa mulher que "não cegou quando todos os outros cegaram" do odioso assalto à democracia. Procura de provas que, segundo ordens superiores, podem ser arranjadas e não encontradas, nem que seja necessário que a realidade seja distorcida, nem que os criminosos sejam heróis e os heróis nunca se conheçam.

Saramago consegue com uma escrita magnética justificar nesta obra o Prémio de 1998. 

De facto, a melhor forma de caracterizar esta obra é chamar-lhe uma parábola sustentada por imaginação, compaixão e ironia e que continuamente nos permite apreender uma realidade fugidia (adaptado de "The Nobel Prize in Literature 1998". Nobelprize.org, 26 Feb 2011, http://nobelprize.org/nobel_prizes/literature/laureates/1998).
Obviamente as convicções políticas do autor não estão ausentes, mas a sua presença dá-se de forma ambígua e não sem que a obra possa ser vista como crítica. Há espaço para se interpretar como sendo a Lucidez do título a que separa a forma comunitária como a Capital reage ao abandono pelo poder, da cegueira de quem se senta no trono. O que torna esta leitura possível é o facto de aqui, ao contrário de outras obras, Saramago não procurar levar o leitor ao colo através de conclusões. Aqui não há uma infantilização do leitor, não há longas imposições de factos, há pinceladas e descrições de estados de espírito, de pensamentos. Há uma grande nuvem pintada, que para uns é cinzento escuro, para outros cinzento claro, mas sempre cinzento como uma manhã de nevoeiro.

"Ensaio sobre a Lucidez", que roça a obra perfeita, passou ao lado de polémicas. O que é pena!

Saturday, February 19, 2011

Lost Girls, Alan Moore com desenhos de Melinda Gebbie


Alan Moore aventurou-se, com Melinda Gebbie, em fazer crescer três meninas muito conhecidas por serem isso mesmo: meninas. Agora mulheres adultas todas se encontram num hotel austríaco na véspera da I Guerra Mundial. Rapidamente as três mulheres se aproximam e começam a partilhar experiências e os seus próprios corpos.

Querer alongar mais, ou elevar a outro plano que não este, seria estar a desvirtuar a obra em si. Digo-o porque estamos perante uma obra pornográfica. Aliás, uma obra assumidamente pornográfica, uma vez que assim foi classificada pelo seu autor (apesar da ressalva do mesmo para o facto que o que separa erotica de pornografia é... o rendimento do leitor). Assim sendo, perder muito tempo em análises exaustivas seria como colocar ao mesmo nível Sá Leão e Alfred Hitchcock.

Não é que o livro não se apresente, do ponto de vista estético, como uma obra agradável. O desenho é feito todo em tons de lápis de cera, imagens esbatidas, apresentando estruturas diferenciadas para cada narradora, e mantendo-se firme às oito páginas por capítulo. Também a organização destes procurou a sua inspiração nas obras que lhe dão origem, sendo os títulos de cada capítulo expressões da obra onde aparece a narradora principal desse capítulo.

Alan Moore começa muito bem, dotando de um fio narrativo que não nos obriga a conhecer as histórias por trás da história, mas à medida que procura enveredar cada vez mais rumo ao chocante, rumo ao explícito, acaba por se afastar cada vez mais do Jean Rollin que se vinha revelando e acaba por se tornar um Sá Leão. Felizmente, à medida que o conteúdo vai desaparecendo, as imagens ganham destaque, muito por culpa do trabalho de Melinda Gebbie.

No cômputo geral, o livro acaba por ter uma avaliação marginalmente positiva, uma vez que se trata de um livro de banda desenhada, onde a componente visual tem muita importância e consegue, neste caso, colar o caos que se tornou a história. Um pouco como um filme pornográfico...


Entrevista do autor à BBC, colocada no youtube.