Wednesday, January 27, 2010

Memória das minhas putas tristes, por Gabriel Garcia Márquez


No dia, ou melhor, na véspera do seu nonagésimo aniversário, um jornalista decide oferecer-se uma prenda sui generis; decide oferecer-se uma virgem. Para tal liga à sua patroa de eleição e pede-lha para essa mesma noite. Por entre peripécias a alcoviteira lá consegue forrar-lhe a alcova, mas chegada a hora ele não consegue aproveitar a sua prenda.

Poderia acabar aqui, ainda antes de começar, mas não é assim que se passa. Antes de mais porque o jornalista não tem uma idade qualquer! Noventa anos é uma idade que impõe respeito e só mesmo na primeira metade do século XX um indivíduo de tal idade poderia aspirar a ainda não ter sido posto no lixo que se reserva aos que nos lembram as nossas limitações.

A questão que GGM levanta nesta obra, muito mais do que o amor aos noventa, é essencialmente a visão da terceira idade e a visão que a terceira idade tem. Apesar de se passar na primeira metade do século XX, a verdade é que, se pararmos para pensar, hoje a situação é ainda mais acentuada...

A questão, essa questão que se lê nas entrelinhas, é a questão de até que ponto vamos mudando com idade. Até que ponto é que a idade nos inutiliza, nos consome e nos relega para um papel de espectadores da nossa própria vida.

Pela pessoa do nonagenário somos conduzidos a um mundo de quem sabe mais, porque viveu mais; alguém que aprendeu a viver com as suas limitações; alguém para quem "cada hora é um ano" e que aos olhos de todos está preparado para morrer, desaparecer, sem desejos, sem vontades, mas alguém que na idade arranja vontade de desflorar uma virgem adolescente e que apesar da sua sabedoria não consegue evitar enlevar-se por uma louca paixão, só ao alcance da imaturidade e inexperiência dos jovens!

Pois tal é a visão que temos da velhice! Paremos e olhemos para os velhos, grita-nos GGM com esta Memória. São cada vez menos, apesar da população envelhecida; olhemos para eles e vejamos nas suas rugas o destino de todos. Qual o mal das rugas e dos cabelos brancos para serem ferozmente combatidos e escondidos? A verdade, a imutável e inultrapassável, é que passados os casamentos e baptizados, virão os funerais e pelo menos um ficará para os ver, apesar das rugas, dos cabelos brancos, das dores nas articulações...

A obra de GGM é um lembrete do que nos aguarda na velhice, mas também um hino de amor à e na mesma. Um lembrete que a verdadeira velhice acontece dentro de nós quando nos deixamos suplantar pelo tempo e perdemos a capacidade de nos apaixonarmos pelo mundo em que vivemos e no qual todos os dias surgem adolescentes para desflorar. Outrora os velhos não eram velhos, eram sábios!

Sunday, January 10, 2010

Cão Velho Entre Flores, por Baptista-Bastos


Baptista-Bastos convida, no seu prefácio à séptima edição desta obra, que data de 1974, o leitor a acompanhá-lo através de uma infância aflita e as ruas onde ela decorre. Ruas essas, de acordo ainda com o autor, que se localizam em Lisboa. Uma Lisboa, nota-se na obra, de bairros como aldeias, onde todos se conhecem, onde todos se amam e odeiam e que estão, entre elas, tão longe como as aldeias de um país, país esse que aqui é Cidade.

É uma cidade adormecida, por alturas da Guerra, lá fora e distante, que chega até nós através de notícias de jornal e relatos na rádio. Uma guerra lá fora, mas que divide famílias cá dentro... Uma dessas famílias é a de Manuel, nome adoptado pelo personagem, nome que roubaram ao seu primo mudo, primo que o orienta pelas ruas do bairro que o viu nascer, onde está a família, os pais que não se amam, os avós separados em afectos, o tio que não pode com o pai nem com o cunhado e a tia desanimada.

Com a Guerra começa a guerra em casa. O tio e a mãe de um lado o pai e o avô do outro, cada qual no seu espectro político. Avô que de resto só lamenta que o genro não seja seu filho... A Guerra acaba por durar toda a narrativa e está sempre presente. Assim como a outra guerra, a da sobrevivência de Manuel, que parece começar quando o avô de Manuel, um cão velho entre flores, morre. Esse avô que mais não era do que um dos "cães velhos dos campos, [que] quando pressentem que estão à morte, procuram as terras onde há flores para morrerem mais à vontade".

Esta morte acaba por ser o início da procura de Manuel pelas suas flores. Indesejado pela família da mãe, que vê nele um estorvo, e por vezes uma memória penosa para o pai, ele vai passeando por Lisboa, qual bola de ping-pong, na companhia ora do seu primo Mudo, ora pela mão da avó, ou ainda de João e do Mágico, habitantes do seu pequeno mundo.

A viagem prometida por Baptista-Bastos é uma viagem narrada essencialmente na primeira pessoa, em tons intimistas e com uma clara tomada de posição, ao estilo do escritor, com ocasionais fugas para a terceira pessoa, mais para o final da obra. Não é uma viagem alegre, é, isso sim, toda ela feita de uma tristeza e de um vazio nas personagens. O que não implica necessariamente que sejam personagens vazias!

Esta questão das personagens é algo que parece ficar algo por explorar, uma vez que, consoante a visão do leitor, se podem comparar ao dilema do copo meio-cheio ou meio-vazio. O autor deixa tanto delas por dizer, por narrar, que a alguns parecerá certamente que não passam de copos vazios, figuras que se movem ao sabor do vento. A outros parecerão estátuas que se erguem no meio de um rio, resistindo a ventos e marés, não se movendo quando todo o mundo em seu redor caminha para algum lado, pelo percurso de menor resistência. Mais ainda, a complicação surge se se cair na tentação de aplicar um carimbo a um personagem. Em dada passagem pode parecer superficial, mais à frente muda para alguém profundo, voltando ao banal alguns capítulos depois. E vice-versa!

Outra característica é a ausência de grandes descrições. Tudo o que é dado é-o em tons impressionistas, sem contornos firmes, uma mancha que nos dá a entender o que é, apenas o essencial, deixando o restante para o leitor imaginar. Retira-se algum peso à obra, mas também a uma certa sensação de profundidade.

Ao nível da escrita verifica-se um notável domínio da pontuação, sem invenções demasiadas, e com a qual regula o ritmo da narrativa, fazendo o leitor acelerar ao ponto de perder fôlego, forçando o leitor a pausas para meditar no que lê, para que melhor se forme a imagem na sua cabeça, para então sim colocar os personagens. Tudo isto feito, repito, com detalhes impressionistas, que são pincelados aqui e ali com um certo exagero de linguagem mais elevada.

A título pessoal (como se todo o resto do comentário não o fosse), não foi um daqueles livros que me encheram as medidas, mas é um livro de leitura bastante agradável. É uma daquelas portas de entrada para um autor que não oferece resistência quando a tentamos abrir, mas também não é uma passadeira vermelha estendida para este escritor.

Sword Song, by Bernard Cornwell



No quarto livro das Saxon Stories, Uthred Ragnarson de Bebbanburg continua a sua saga em busca das suas terras, do seu castelo e da sua vida. Amarrado por juramentos a um rei de que não gosta e não gosta dele, continua entregue a um destino que, espera ele, o levará à sua liberdade.

Alfred continua a querer aumentar o seu reino e os seus olhos viram-se agora para a expansão a Norte. A forma mais rápida sendo o dar um regente ao Sul de Mercia. O eleito é Æthelred, primo de Uthred, que permanecerá um leal vassalo de Alfred pelo seu casamento com Æthelflæd, filha deste. A prenda de casamento que Alfred lhes reservou é a cidade de Lundene, com o respectivo controle do tráfego do Temes, e será Uthred, que desgosta profundamente do seu primo, a responsabilidade de tornar esta cidade, ocupada por hordas de Vikings, parte do protectorado de Mercia.

Bernard Cornwell continua as suas Saxon Stories com um livro que é o seu mais puro estilo: um romance histórico recheado de batalhas contadas na primeira pessoa, que nos transportam para o seu coração e desejar ser o herói; intriga política à mistura; tudo servido com doses maciças de uma escrita magnética que agarra o menos entusiasmado dos leitores, da primeira à última página

Friday, January 8, 2010

2009 - Guilt Machine - On This Perfect Day




Arjen Anthony Lucassen, o génio por trás de, entre outros, Ayreon, está de regresso com um novo projecto.

O nome? Guilt Machine. O álbum? On this perfect day.

Seis faixas, a mais pequena com cerca de seis minutos e desta feita um projecto com poucas caras. Para lá do referido juntam-se-lhe Lori Linstruth, que com ele colaborara no projecto Stream of Passion; Chris Maitland, antigo baterista de Porcupine Tree; e Jasper Steverlinck, vocalista dos belgas Arid.

Brevemente (assim que encontre) colocarei o que acho!

Tuesday, January 5, 2010

Sexus, by Henry Miller



Henry Miller partiu em 1930 da sua Nova Iorque natal para Paris. No entanto, quem era este homem, antes da viagem? A sua obra Sexus é uma pista.

Recuando até aos anos 30, logo após a Grande Depressão, ou à década de 40 do pós-guerra, é normal que esta obra seja e deva ser encarada como chocante. É normal porque o relato de um homem que vive contra a maré, tem de chocar aqueles que sempre seguiram a corrente do rio. Não se deve esquecer que aqueles acontecimentos são autênticas quedas de água no rio da humanidade, pontos onde a corrente não volta atrás, independentemente da fase da lua, representando o que de pior a ganância e a soberba humanas têm para dar. A sociedade daí resultante procurou então seguir um rumo contrário, dotada do mesmo extremismo da anterior, no entanto, e das mesmas fachadas. Fundamentalmente, não importa se o que vinga é o glamour e opulência dos anos 20, a belle époque, ou se a contenção dos anos 30, ou os valores morais dos anos 40, todos eles exageradamente extremistas, invariavelmente condenados a serem fachadas.

Sexus é portanto uma viagem a uma Nova Iorque que vive das fachadas dos seus habitantes. Uma Nova Iorque que se esconde por trás de fachadas de edifícios, no aconchego do lar; um olhar público sobre acontecimentos privados. Isso realmente choca as mentalidades da década de 40, tão seguras da sua superioridade moral, tanto como a vitória na Guerra os podia deixar, tanto que proíbem a publicação desta obra, dita, obscena, que de obscena só tem a demolição de fachadas.

A viagem de Miller, e viagem porque grande parte da acção decorre na rua ou a caminho de outro local, é uma viagem à vida dessa cidade que se orgulha de não dormir, feita pelo olhar de um aspirante a escritor, amargurado e desgostoso. Não é uma viagem onde, pornograficamente, mulheres esculturais caem no colo do macho de serviço, mas onde, pornograficamente, é fácil acabar-se na cama com uma.

Pornograficamente? O pornográfico de Miller reside no escrever sobre esse aspecto determinante sobre as relações humanas: aquilo que fisicamente une duas pessoas de sexo oposto. No fundo, aquilo que desde os primórdios assegura a multiplicação da espécie, mesmo que não seja efectuado com esse fim. A base da união... A base do nosso ser social! O pornográfico de Miller, em Sexus, é o deixar cair a cortina para o que se passa nos quartos desses homens e mulheres que se amam! No fundo, o que choca em Sexus não é o que lemos, mas a realização de que estamos a ler o que gostávamos de poder dizer!

Outras leituras se podem tirar de Miller e que são também elas chocantes, para um sociedade estratificada, organizada e que não aceita mudanças. Implicitamente pode-se concluir que não há fórmulas para a felicidade. Pelo personagem principal, esse Mr Miller, esse Val que nunca é identificado, vemos que a satisfação de cada impulso físico do nosso corpo não nos traz felicidade. Afinal, ele entrega-se aos prazeres da carne em múltiplas situações, com múltiplas intervenientes e mesmo assim acaba na sarjeta à procura de algo, vazio e não realizado. Apesar de ceder às vontades não atinge a felicidade. Nem a sua primeira esposa, tão dotada ao casamento de fachada que a sociedade lhe impunha encontra a felicidade, ou não voltaria para ele em busca dessa realização física que o casamento lhe tirara. Onde está então a fórmula da felicidade e da realização? Não é uma resposta que Miller, pornograficamente demolindo as fachadas dos prédios, pornograficamente expondo os quartos, os corredores, as salas, o conforto dos lares, nos dê. Tudo o que ele nos dá é um olhar próprio das salas que frequentou, os quartos onde dormiu, as mulheres que amou. Tudo o resto fica a cargo de quem nele se reveja. Os erros que achem que cometeu, as virtudes que manifestou...

Quanto a mim foi dos livros mais difíceis de ler que encontrei. Várias vezes voltei atrás para reler dois ou três capítulos, noutras alturas parava simplesmente, e como se meteu uma mudança de casa pelo meio, durante quase um ano não soube do paradeiro da obra. Que demorou três anos a ser lida! De resto, quem partir para este livro com esperança que o título indique o que ele relata, terá uma grande desilusão uma vez que o título não indica mais do que uma ferramenta que o autor usa, não o objecto da sua narração.

The Picture of Dorian Gray, by Oscar Wilde



E se uma qualquer fotografia nossa... Não!

E se a nossa melhor fotografia, aquela que capta toda a essência da nossa juventude, na qual gostávamos de ser para sempre revistos, fosse um quadro da autoria de um pintor banal? Para além disso, e se esse quadro fosse o melhor trabalho desse mesmo pintor? Como bónus, e se esse quadro envelhecesse por nós? Melhor ainda, e se esse quadro carregasse todo o peso as nossas acções, à laia de consciência? E se pudéssemos ver a nossa alma?

Basil Hallward é um pintor mediano na Londres da segunda metade do século XIX, até ao dia em que conhece e se deixa fascinar por Dorian Gray, um jovem de beleza e inocências extremas. Basil produz então as suas melhores obras, entre as quais se conta a sua obra-prima, um retrato de Dorian Gray. A beleza e a perfeição com que Basil capta a essência de juventude e inocência de Dorian é tal, que, levado pelo manipulador Lord Henry, Dorian suspira como seria bom ele permanecer para sempre jovem e inocente e que o quadro pudesse envelhecer no seu lugar. Sem que Dorian se aperceba logo, o quadro começa a fazer algo mais do que envelhecer, torna-se a sua alma e a sua consciência.

Mas... Pode a arte ser reflexo da alma de alguém? É a arte algo mutável, ou será algo estático que tem de ser apreciada à luz do momento em que é produzida? Poderá uma qualquer paixão shakespeariana mudar com as oscilações passionais do intérprete? Onde reside a beleza da arte?

Oscar Wilde leva-nos, através das personagens de Dorian Gray e Lord Henry Wotton ao mundo dos dandies da Londres do final do século XIX, um mundo dominado por festas e relações de faz-de-conta e um profundo interesse superficial pelas artes e o filosofar.

Não se julgue no entanto que a esta é uma profunda viagem superficial! A viagem que Wilde faz ao mundo da Arte é uma viagem ao interior profundo da selva que é a definição da Arte em si. Sendo a Arte uma representação do real, que parte do Real se reflecte nela? Ou ainda, sendo a arte a visão de uma pessoa sobre o real, quanto do artista está representado no arte? E quanto do objecto artístico é absorvido pela sua representação?

Recorrendo a uma série de metáforas e comparações com a Antiguidade Clássica e descrições pormenorizadas das ambiências, sem se deixar cair na descrição das interacções dos personagens, Wilde transforma todo o conto num quadro em movimento, um recital de filosofar sobre a natureza da Arte e do Ser e do quanto cada um se toca.

À medida que caminha para o fim e esperamos respostas, estas ficam no ar, ao critério de quem aprecia a obra, pois a saída de cena Basil, o mediano pintor, retira da obra o olhar do artista, deixando-nos a braço com o egoísmo de Henry e a ausência de consciência de Dorian. O saber alto e iluminado dos salões do primeiro e o conhecimento empírico das profundezas do Inferno Humano do segundo, deixando sempre no ar que entre ambos há algo mais do simples atracção, como o indicia a casa de Tânger, à altura, conhecido refúgio de homossexuais.

O livro lê-se muito bem, mas não é um livro de respostas, é isso sim um livro de perguntas.

Boas-vindas

Olá.

Este blog, o primeiro que publico de raíz e em exclusivo, é um blog que dedico a uma vertente mais cultural. Nele vou publicar as minhas opiniões relativas a livros, álbuns, filmes, espectáculos que tenha lido, ouvido, visto, assistido.